sábado, outubro 04, 2014

 Estelinha,                                                                  


                                                                   Este é um capítulo de um conto que ambiento no período Vargas - é apenas a "heroína" no dia da morte de Getúlio

                                                                             

Naquela manhã acordou lenta. Sempre despertava com sono, com uma vaga sensação de esquecimento, mas num impulso pulava da cama com a urgência dos atrasados, muito embora sempre estivesse pronta, hoje era diferente.

Levantou. Olhou-se no espelho. Algo vago, de meio tamanho, de cantos enferrujados que emolduravam a carcomida cômoda de origem indefinida, único móvel, além da cadeira e da cama a mobiliar o modesto quarto, da pequena casa de porta e janela no meio da rua ..... travessa ...do no bairro da Lapa.

Despiu a camisola de algodão, deixou que lhe caísse aos pés, não se moveu, lentamente passou as mãos pelos cabelos como se os arranjasse, percebeu seus olhos estavam brilhantes, as naturais olheiras do despertar pareciam contrastar com castanho profundo da cor da íris. Gostou.

Gostou da aparência, não se acreditava bonita, achava seu rosto comum igual ao de tantas que se viam pelas ruas, não era clara, nem morena, as feições eram suaves, a boca, com dentes perfeitos, era ornada por lábios carnudos que procurava disfarçar com um batom suave, as maças do rosto um pouco salientes se compunham bem com um queixo proporcional, os cabelos castanhos, quase negros, levemente encachiados lhe davam um ar nativo, produto da mestiçagem brasileira.

Baixou os olhos ao colo, observou que firmes brotavam os seios, não eram grandes nem pequenos nas aureolas médias a cor marrom arroxeada brilha ao redor dos mamilos.  Sempre fora seu orgulho, cuidara deles na intimamente, era seu segredo, a postura ereta, permanente mantida, era algo natural. Era seu fetiche. Recordava-se daquele dia de verão que saiu para o trabalho e deixara propositalmente o sutiã em casa, apenas com a blusa de seda a cobrir-lhe, emoldurada por um pequeno casaquinho de linho, se sentindo literalmente nua. Olhara na volta, será que notariam?

Não, mas também não repetiu a audácia. O roçar livre da seda sobre os mamilos a levaram a uma sensação que não tinha coragem de repetir, se sentira plenamente excitada, mulher.

Baixou mais o olhar, viu o pequeno ventre chato, alargando-se para as coxas, e brotando o belo tufo de pelos pretos. As pernas fortes, talvez demais, pensou, formadas nas intermináveis caminhadas pelas ladeiras cariocas, também lhe agradava, gostava quando via os homens torcer o pescoço para tentar adivinhar algo que vinha acima dos joelhos. Puxava nestas horas discretamente a saia, mas sempre um pouco tarde, generosamente deixando segundos de deleites a seus admiradores, breves amantes, voyeurs de segundos. 
Estes segundos eram seus. Perfeitos. Sozinhos. Logo passavam.

Num apressado movimento buscou o robe em cima da cadeira, vestiu, pegou a toalha e a bolsinha com o sabonete, shampoo, etc. tudo que necessitava para sua toalete matutina e abrindo a porta caminhou apressada ao final do corredor, para o único e modesto banheiro da casa.   A rapidez era necessária, pois a lentidão a colocaria na fila. Ganhou a corrida. Ainda ouviu um poxa de alguém que se atrasava.
   
Deixou a água escorrer pelo corpo lentamente, ensaboou os cabelos o resto do corpo demorando-se um pouco entre as pernas as nádegas e os seios, a bucha usou nos pés.

Enxaguou-se lentamente, fechou a torneira morna e permitiu-se sentir, num arrepio, a água fria escorrer. Neste momento, algo lhe chamou a atenção, um burburinho estranho soava. Algo não usual, afinou os ouvidos, afinal naquela casa tudo se ouvia, estava estranho, parecia que todos falavam ao mesmo tempo, o rádio mais alto que de costume trombeteava um noticiário ininteligível.

Enxugou-se mais rápido que de costume, enrolou a toalha sobre os cabelos, juntou suas coisas, calçou os chinelos e saiu. No corredor encontrou a mãe.

- Mãe o que está havendo? Esta barulheira toda!

Só ai, a observou. Os olhos cheios de lágrimas e a expressão de terror e espanto. Mãe o que aconteceu? Perguntou.

- Então não sabes?

- O Getúlio se matou! Exclamou.

Não, não podia, não era verdade, algo estava errado era mais alguma do Lacerda. Refletiu.
   
Não tinha havido aquelas histórias do Gregório Fortunato, da morte do Major Vaz, tudo intriga. Ela sabia dos fatos e isto não combinava.

Todos falavam, choravam.

Em um frenético voltou ao quarto. Por impulso pegou a calcinha, o sutiã, a combinação e um vestido, maquiou-se levemente, penteou os cabelos, botou um prendedor num coque, calçou os sapatos de salto sem meias e estava pronta. Saiu. Um beijo na mãe, completado por um: ”não chora e tudo vai ficar bem”. “Vou até a cidade, na repartição e lá devo saber direito das coisas”. 

Pegou o bonde, as expressões eram as mais diversas. Em algum momento falava-se muito, em outro um silêncio.

Nas lojas, padarias, quitandas em todas as partes as pessoas aumentavam o volume de seus rádios.

Estavam em desespero, o Rio de Janeiro estava em polvorosa, o povo na ruas estava perplexo, a morte do “homem” detonava na população sentimento de revolta e consternação. Grupos se juntavam conversavam, o choro era convulsivo.

O Getúlio era permanente, todo mundo há mais de 20 anos tinha se acostumado com a vulto do “velho”, em todos os lugares estava sua figura, tinha a música: “bota o retrato do velho, tira o retrato do velho, deixa no mesmo lugar”
.
Ela chegou no prédio da Avenida Antônio Carlos onde trabalhava. Todos iam para todos os lugares. Entrou no elevador. O ascensorista fechou a porta pantográfica, cuidadosamente polida em dourado, puxou a manivela pondo-o em movimento e, num arranco, com ar de espanto, falou: “Dona Estelinha a senhora já soube? Inquiriu. Ele mesmo respondeu: Mataram o Dr. Getúlio”. Ah então foi isto? Já Imaginava. O Boato do suicídio era coisa da oposição. Então, agora eles vão ter que se entender com o povo.

Nesta hora a porta do elevador foi aberta, saiu ao vestíbulo, arrumou a saia, passou a mão nos cabelos e entrou olhando, triste, compungida, mas firme sem ser altiva, na sua sala, a procura do olhar dos colegas.

Foi aí que notou que alguma coisa não era verdade.

Eram 9 horas. A carta testamento era lida, por Oswaldo Aranha na Rádio Nacional em repetido, era um manifesto, uma bandeira de luta, o trabalhismo, contra os “monopólios estrangeiros” entregava seu cadáver aos seus detratores. Saia da vida para entrar na história

No semblante de todos se confirmava a tragédia. Getúlio tinha se matado com um tiro no coração. A filha Alzirinha tinha confirmado,

Se fosse assassinato teriam os inimigos, o povo se revoltaria, massacraria a direita, mas suicídio.... Na cabeça dela algo não fechava.

Ocorriam manifestações, grupos populares indignados, vandalizavam a cidade, com paus pedras ateando fogo ao material das oposições. Tentaram invadir os jornais O Globo e Tribuna da Imprensa, se dirigiram ao Catete, agredindo na passagem a Embaixada Americana e apedrejaram a ESSO. Foram contidos pelos militares.
No dia seguinte rapidamente o corpo foi para São Borja.
Em outros estados também houveram manifestações, maiores ou menores, todas contidas.
Os Comunistas foram os mais surpreendidos, se antes atacavam Getúlio e namoravam com um golpe, agora estavam sem saber o que fazer. No final acabaram apoiando Juscelino em 1955.
Café Filho assumiu e montou um Ministério anti-Vargas, com figuras como Prado Kelly, Eugenio Gudin, Eduardo Gomes, Lott, Juarez Távora, entre outros.

O golpe estava liquidado, isto ela sabia, mas até quando.

Neste momento sentiu uma náusea correu ao banheiro, vomitou. Só voltou a si quando ouviu a voz nas suas costas de Dona Estrela. Está se sentindo bem minha filha? Não é nada. Respondeu. Neste momento já refeita falou: Que horror! O que será de nós! Dona Estrela do alto de sua calma argumentou, tudo ficará igual, não se amofine já vi outras vezes. Vamos trabalhar.

Passou uma água no rosto recompôs a maquiagem e voltou à sala de trabalho. Logo veio a notícia, os funcionários estavam liberados.

Dona Estrela com as recomendações de praxe, dispensou todo mundo.
 
Saiu para rua determinada, já não era a funcionária burocrata do IAPC, mas a agente Rita e precisava explicações.

(Continua no próximo capítulo)
 




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